filha da miséria

poema de Maya Falks





Filha da miséria

Eram quatro quartos montados com o improviso da miséria
Separados por panos em farrapos de onde era possível ouvir 
O grito agoniante daqueles estômagos vazios
Eram quatro espaços diminutos onde a mãe contava histórias
Eram frestas nas paredes de retalhos que ao frio provocavam arrepios
Pés descalços, em feridas das pedras pontiagudas da vila
Pelo leite e pelo pão, as mulheres murchas envelhecidas faziam fila
Era pouco, quase nada, em lágrimas densas saía a mãe da mesa
Engolia o luto da vida perdida, do filho consumido de fome e pobreza
Havia o pó que subia sem dó quando passavam os carros dos poderosos
Era caminho das belas mansões que ao longe faziam silhueta
Nos vales com montanhas verdes e picos rochosos
Enquanto do lado de cá criança faminta marcava a sarjeta
Já nem cantava aos filhos canções de ninar
O sono só vinha quando o corpo faminto desabava de tanto chorar
Não quis o destino dar-lhe esperança
Encheu-lhe o ventre e a casa de rebentos sem instrução
Sofria com a expressão do desespero no rosto cansado de cada criança
A cada doença da água estragada e comida faltosa feria-lhe o coração
Diziam-lhe que era escolha sua porque se quisesse nenhum filho faria
O olhar de desprezo de quem desconhece a vida que leva, sem nem compaixão
Escrevia duas letras, se muito, nem mesmo seu nome de fato sabia
E dela esperavam cuidados que nunca quem julga foi capaz de ensinar
Mas é bem mais fácil na vida apontar o dedo e poder condenar
Ela, que só tinha coragem de catar nas lixeiras o que os ricos deixavam pra trás
Ela, que tinha seis bocas vazias em casa para alimentar
Os outros sucumbiram à fome, à dor e a miséria que nunca os abandonou
Ao contrário do pai das crianças que um dia partiu e nem se importou
Era ela contando com a sorte, testemunhando a morte que insistia em voltar
Sozinha no meio do nada, a vida acabada a sempre lembrar
Que assim o destino quisera, sem choro nem vela, amaldiçoar
Cada filho dessa vida ingrata, sob a miséria morrer e matar
Tiravam as chances da vida, por um pão aceitava qualquer humilhação
Menino criado como bicho sarnento e ainda cobravam ser bom cidadão
Nas vielas da vida, sem eira nem beira, ia ela implorar
Um prato vazio de comida sobre a mesa quebrada da casa que ia se esvaziar
Dos filhos, famintos, sem chance, os que viveriam iriam roubar
Ela, fraca e sem brilho, da vida maldita que Deus lhe deu
Abraçou o diabo com força, pedindo à benção de quem já morreu
Os panos que separavam os quartos testemunhariam sua depressão
Seu corpo entregue aos homens com bom dinheiro e sem coração
Debaixo de corpos pesados, suspiros molhados, chorava de dor
Ninguém se importava com ela, não havia na vida conhecido o amor
Jovem em corpo de velha, as marcas da fome eram tal cicatriz
Olhava pra trás na sua história e sabia que nunca tinha sido feliz
Agora, com filhos bandidos, ou mortos, perdidos, se viu sem razão
Da miséria guardada no bolso, a faca em ferrugem encontrou o coração
Morreu sem dentes na boca, barriga vazia e uma história sem cor
Morreu chorando baixinho, no seu cantinho, sem pedra bonita ou coroa de flor

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